Parte 1 Parte 2 Parte 3.1

Essa é a primeira parte da terceira parte do artigo sobre primazia petrina. Nesta terceira parte veremos as citações dos padres da Igreja que testemunham essa primazia. 

Tem-se por primazia petrina a autoridade de Pedro sobre todos os fiéis da Igreja de Cristo, autoridade que foi sucedida em Roma. Portanto, traremos citações da patrística que corroborem com essas duas características, a preeminência de Pedro e a preeminência de Roma.


Santo Inácio de Antioquia

Santo Inácio, segundo a obra História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia, foi o segundo bispo de Antioquia, sendo sucessor do Apóstolo São Pedro [1]. Foi enviando à cidade de Roma para sofrer o martírio nas feras por ter prestado testemunho da sua fé em Jesus Cristo. No seu percurso resolveu realizar exortações às mais diversas igrejas, onde, para a igreja romana, ele escreve o seguinte:  


Carta aos Romanos

Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja que recebeu misericórdia pela grandeza do Pai altíssimo e de Jesus Cristo Seu Filho único, Igreja amada e iluminada pela vontade d'Aquêle que escolheu todos os seres, isto é, segundo a fé e a caridade de Jesus Cristo nosso Deus, ela que também preside na região da terra dos romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada bem-aventurada, digna de louvor, digna de êxito, digna de pureza, e que preside à caridade na observância da lei de Cristo e que leva o nome do Pai. Saúdo-a também em nome de Jesus Cristo, filho do Pai. Aos que aderem a todos os seus mandamentos segundo a carne e o espirito, inabalavelmente cumulados e confirmados pela graça de Deus, purificados de todo colorido estranho, desejo todo o bem e irrepreensível alegria em Cristo Jesus nosso Deus.[2]

Observem que Santo Inácio diz: “ela que também preside na região da terra dos romanos”[1] e segue “preside à caridade”. Portanto, para Inácio, Roma exerce uma espécie de primado de amor, presidindo por meio da caridade na observância da lei de Cristo. 

Com o seu martírio em iminência, Santo Inácio também se preocupa com a vacância da cátedra de Antioquia, e exorta que, em sua ausência, apenas Jesus em pessoa poderia ser o seu bispo, e a sua caridade, utilizando-se da referência que fez no prólogo a igreja de Roma. Sendo assim, em sua ausência, apenas Jesus poderia governar, e a igreja de Roma.

Lembrai-vos em vossa oração da Igreja na Síria, a qual, em meu lugar, tem Deus como pastor. Só Jesus Cristo será seu bispo e a vossa caridade. [2]



Santo Irineu de Lião

Santo Irineu foi bispo de Lião, e discípulo de São Policarpo, que por sua vez foi discípulo de São João. Em sua obra “contra as heresias”, um tratado contra a heresia gnóstica, o santo condena seus opositores por arrogarem para si uma tradição que não lhes pertence, para expor o caráter ilegítimo dos hereges Irineu se compromete a demonstrar onde está a verdadeira tradição, e assim ele escreve:

Mas visto que seria coisa bastante longa elencar, numa obra como esta, as sucessões de todas as igrejas, limitar-nos-emos à maior e mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada e constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e Paulo, e, indicando a sua tradição recebida dos apóstolos e a fé anunciada aos homens, que chegou até nós pelas sucessões dos bispos, refutaremos todos os que de alguma forma, quer por enfatuação ou vanglória, quer por cegueira ou por doutrina errada, se reúnem prescindindo de qualquer legitimidade. Com efeito, deve necessariamente estar de acordo com ela, por causa da sua origem mais excelente [propter potentiorem principalitatem], toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, porque nela sempre foi conservada, de maneira especial, a tradição que deriva dos apóstolos. [3]

Santo Irineu diz que a Igreja de Roma é aquela cuja qual todos devem estar de acordo, por causa da sua “potentiorem principalitatem” [principado mais poderoso]. E reitera: devem estar em conformidade com ela “toda a igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares”, pois nela se conservava a tradição apostólica de maneira especial.



Papa São Clemente Romano


São Clemente I, Clemente I, Clemente Romano
Clemente I foi o 4º bispo de Roma[4]. Por meados dos anos 96-97 o santo escreve uma carta a comunidade de Corinto admoestando-os pela sua rebeldia contra os presbíteros do local.  

Vós que lançastes os fundamentos da revolta, submetei-vos aos presbíteros e deixai-vos corrigir com arrependimento, dobrando os joelhos de vosso coração. Aprendei a submeter-vos, depondo a soberba e a orgulhosa arrogância da vossa língua. É melhor para vós ser encontrados pequenos e dentro do rebanho de Cristo, do que ter aparências de grandeza e ser rejeitados de sua esperança. [5]

O santo papa demonstra sua autoridade apostólica repreendendo a igreja grega que outrora havia sido repreendida pelo próprio apóstolo Paulo.



Papa São Vitor I

São Vitor I foi o décimo quarto bispo de Roma, em seu papado se desenrolou uma questão muito significativa, acerca da data de comemoração da páscoa; Eusébio de Cesareia descreve:

As comunidades da Ásia inteira, segundo antiquíssima tradição, pensavam que se devia guardar a festa da Páscoa do Salvador no décimo quarto dia lunar, em que era prescrito aos judeus imolar o Cordeiro. Era absolutamente necessário pôr termo aos jejuns, fosse qual fosse o dia da semana em que caísse a festa. Mas, as demais Igrejas de toda a terra não costumavam manter esse modo de proceder, e segundo a tradição apostólica observavam o uso até hoje em vigor, julgando não ser conveniente terminar o jejum a não ser no dia da ressurreição de nosso Salvador.

Por conseguinte, realizaram-se sínodos e assembléias de bispos para tratar do assunto; e todos, de comum acordo, publicaram por carta um decreto eclesiástico para todos os fiéis, declarando que o mistério da ressurreição do Senhor dentre os mortos não fosse jamais celebrado senão no domingo e que somente neste dia se encerrariam os jejuns relativos à Páscoa.[6]


Essa questão já havia sido discutida atormente, por volta de 160, quando São Policarpo, bispo de Esmirna, foi a Roma para tratar com o papa Aniceto sobre essa questão. Os dois se separaram em comunhão, mas não houve um acordo. Os bispos da Ásia mais uma vez iriam se opor a tal mudança, enviaram uma carta a São Vitor, por meio de Policrato, citando o nome de vários santos e homens piedosos que haviam guardado esse preceito, chegando a citar até o próprio apóstolo João. E terminaram dizendo que se deixariam assustar, e que convinha mais obedecer à Deus do que aos homens.[7]

Devido a relutância da comunidade asiática, são Vitor resolveu excomungar todas as igrejas da Ásia, sem exceção, proclamando por carta que todos os irmãos desta região encontravam-se fora da unidade da Igreja.[7] 

Mas essa decisão não agradou a muitos bispos, e o papa recebeu palavras muito incisivas. Um dos que se opuseram foi Santo Irineu, cuja carta Eusébio descreve:

Entre eles achava-se também Ireneu, que escreveu em nome dos irmãos que ele dirigia na Gália. Em primeiro lugar, declara que somente no domingo se deve celebrar o mistério da ressurreição do Senhor; depois exorta delicadamente Vítor a não apartar da comunhão Igrejas de Deus inteiras, que conservam a tradição de antigo uso; e a muitas outras razões, [7]

E Eusébio continua: 

E Ireneu bem merecia tal nome, pois era pacificador pelo nome e a conduta, visto que exortava e servia de intermediário, em prol da paz entre as Igrejas. Entretinha-se epistolarmente não apenas com Vítor, mas ainda com grande número de vários chefes de Igrejas, sobre questões levantadas entre eles. [7]

Vemos que nenhum oposição foi dada ao direito de excomunhão do bispo de Roma, mas apenas quanto a justiça do exercício desse poder. São Vitor demonstrou que o bispo de Roma não tinha apenas o poder de excomungar heresiarcas individuais, mas numerosas e populosas igrejas de origem apostólica. Posteriormente o concílio de Nicéia viria a reiterar a posição de São Vitor.



Tertuliano

Tertuliano nasceu em Cartago e foi um notável advogado convertido ao cristianismo. Escreveu muitas obras onde originalmente exaltava a dignidade do apóstolo Pedro:

Algo foi omitido do conhecimento de Pedro, que é chamado a rocha sobre a qual a igreja deve ser construída, que também obteve as chaves do reino dos céus, com o poder de desligar e ligar no céu e na terra? [8]

Pois embora você pense que o céu ainda está fechado, lembre-se de que o Senhor deixou aqui para Pedro e por ele para a Igreja, as chaves dela [9]

E sua reverência não se continha ao príncipe dos apóstolos, Tertuliano, ao falar da igreja de Roma, afirmava que os apóstolos derramaram todas as suas doutrinas nela:

Além disso, porque estás perto da Itália, tens Roma, da qual vem até às nossas próprias mãos a própria autoridade (dos apóstolos si mesmos). Quão feliz é sua igreja, na qual os apóstolos derramaram todas as suas doutrinas junto com seu sangue! [8]

No entanto Tertuliano acabou se convertendo ao montanismo, e, com isso, passou a crer que a Igreja deveria enfrentar limitações quanto ao seu poder de perdoar pecados. Na defesa da sua nova tese ele escreve ao papa Calisto: 

Em oposição a isso (modéstia), eu não poderia ter agido como dissimulador? Ouvi dizer que até mesmo houve um édito estabelecido, e também peremptório. O Pontifex Maximus - isto é, o bispo dos bispos - emite um édito: Remeto, para aqueles que cumpriram (os requisitos de) arrependimento, os pecados tanto de adultério como de fornicação. [10]

O próprio Tertuliano assume que mudou seu pensamento:

Não me envergonho com o erro que deixei de seguir, porque me alegro de ter deixado de seguir, porque me reconheço melhor e mais modesto. Ninguém se envergonha com sua própria melhora.[10]

No mesmo escrito ele volta a falar de Pedro, mantem sua visão de que as chaves foram entregues a ele, mas já não compartilha da visão de que a sua autoridade foi sucedida de qualquer modo:

Se, porque o Senhor disse a Pedro: Sobre esta pedra edificarei a Minha Igreja, a ti dei as chaves do reino celestial; ou, tudo o que você tiver ligado ou desligado na terra, será ligado ou desligado nos céus, portanto, você presume que o poder de ligar e desligar derivou de você, isto é, de toda Igreja semelhante a Pedro, que tipo de homem você é, subvertendo e mudando totalmente a intenção manifesta do Senhor, conferindo (como essa intenção fez) este (presente) pessoalmente a Pedro?[10]

Observem que, mesmo sendo contrário a isso, Tertuliano da testemunho da autoridade da Igreja de Roma. Ora, ela de fato arrogava para si a autoridade do apóstolo Pedro, tanto é que ele próprio já defendera isso, e depois se opusera. 



Papa São Dionísio

Durante o papado de Dionísio [259-268] ocorreu uma disputa entre o então papa e o seu homônimo, Dionísio bispo de Alexandria. A controvérsia girava em torno da trindade, Dionísio de Alexandria escreveu uma refutação a heresia sabelliana; certos cristãos egípcios, ao lerem, concluíram que a refutação continha erros doutrinários em relação a trindade e enviaram uma carta ao bispo de Roma. Papa Dionízio, então, realizou um concílio para examinar a carta, encontrou falhas e pediu que o bispo de Alexandria se explicasse. 

Roma também interveio em Antioquia sobre o mesmo tema, desta vez foi com o bispo daquela cidade, Paulo. Ele negava a divindade de Cristo, e foi impelido a corrigir seu comportamento, a carta é citada por Eusébio:

Escrevemos simultaneamente a muitos bispos, apesar de distantes, convidando-os a dar-nos apoio na terapia da doutrina mortal, como fizemos a Dionísio de Alexandria e a Firmiliano da Capadócia, de feliz memória.[11]

Paulo, então, perdeu seu episcopado, mas se recusou a sair e tentou recorrer ao imperador Aureliano. Esse, porém, tomou a seguinte decisão, a de manter o bispado com aquele que trocasse cartas com o bispo de roma, e assim Domno o sucedeu. Eusébio chega a elogiar a atitude do imperador em seu livro.[11]

 



[1] HE III, 36

[2] Santo Inácio – Carta aos Romanos

[3] Adv. Haer. III, 3.2 

[4] Adv. Haer. III, 3.4 

[5] I carta aos Coríntios de São Clemente, 57

[6] HE V, 23

[7]  HE V, 24

[8] De Praesc. 22

[9] Scorpiace

[10] De pudicitia

[11] HE VII, 30