imagem do concílio de calcedônia, pintura do concílio de Calcedônia

"Neles como em pedra quadrangular se assenta o edifício da fé, e quem não se radicar na sua solidez, seja qual for a vida e feitos que tiver, poderá talvez aparentar a firmeza da pedra, mas estará fora do edifício"

Papa Gregório Magno, falando sobre os 4 primeiros concílios ecumênicos da Igreja [1]



INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é o de provar que a primazia de Roma sempre foi uma crença comum da Igreja de Cristo, com um argumento especialmente destinado para aquela parcela que se intitula “ortodoxa”.

Para isso foi necessário escolher uma situação específica, um tempo que fosse antigo o bastante para exigir respeito daqueles que não querem viver sobre a angústia de pertencer a uma religião que não advém da autoridade dos apóstolos; também deve abarcar todos os polos do mundo, de leste a oeste, para que aquele que tente negar a conclusão tenha que viver com a amargura de considerar-se desprendido de todos os ramos daquela velha árvore da qual ele pensava que era um fruto; é necessário, também, que seja um ponto na história que seja bem descrito, onde a interpretação não esteja sujeita a qualquer contexto, mas que seja o próprio evento o contexto; e, finalmente, deve ser adornada com as mais diversas joias, que são os santos, para que a negação do argumento seja acompanhada pela contradição de opor-se àqueles a quem deveriam assemelhar-se.

Vamos então rumo ao nosso destino, o quarto concílio ecumênico da Igreja Católica, o concílio de Calcedônia. Onde todas essas características estão presentes em evidência, e a nós cabe apenas desfrutarmos. Mas este tem a sua razão de existir em um outro, o segundo concílio de Éfeso, ou melhor, o banditismo de Éfeso, como foi conhecido desde então, e por isso esse será o nosso ponto de partida. Ao final desta caminhada, de Éfeso a Calcedônia, chegaremos à conclusão que a primazia de Roma sempre foi, e sempre será, a legítima fé da Igreja de Cristo.



O BANDITISMO DE ÉFESO

A excomunhão de Eutiques

No começo do ano de 449, o papa Leão Magno recebe uma carta do Imperador Teodósio II onde continha o apelo de um superior monástico, Eutiques. Este afirmava que a heresia de Nestório havia renascido e que, combatendo ela, havia sido excomungado injustamente pelo Bispo Flaviano de Constantinopla, no sínodo realizado naquela mesma cidade.

O fato tinha ocorrido pouco tempo atrás, duas décadas após o surto da polêmica nestoriana, Eusébio, bispo de Dolireia, teve a distinção de expor outra importante heresia. Ele denunciou Eutiques no Concílio de Constantinopla em 448. Não querendo confessar as duas naturezas, Eutiques foi condenado. O Papa Leão leu o apelo. Eutiques afirmou que ele tinha sido convocado a um conselho por Flaviano, e obrigado a confessar duas naturezas em Cristo. Sustentando que o Concílio de Niceia não havia usado tal expressão, Eutiques recusou e foi prontamente condenado. Em sua carta ele escreveu dizendo que apegou-se a fé de Niceia, e que se dispunha a aderir o julgamento do santo papa:

Mas eu, temendo a decisão do sínodo, e não desejando tirar ou acrescentar uma palavra contrária à Fé exposta pelo santo Sínodo de Niceia[2]

... Eu pedi que estas coisas fossem conhecidas por Vossa Santidade, e que você julgue o que parecia certo para você, professando que em todos os aspectos eu seguiria o que você deveria aprovar.  

...Eu me refugio, portanto, com você o defensor da religião...”[2]

Incerto sobre a justiça da punição recebida por Eutiques, o papa pede para que o Bispo Flaviano dê mais informações sobre o caso. Este já havia enviado uma carta, mas ela não havia chegado ao papa, Flaviano então envia uma nova carta, descrevendo detalhadamente os erros de Eutiques. Tendo então conhecimento dos fatos, São Leão Magno professa o seu julgamento, dizendo que Eutiques havia se afastado da fé por se negar a confessar as duas naturezas de Cristo após a encarnação, e prometeu que realizaria um pronunciamento completo em outra carta, o que viria a ser conhecido como o “tomo a Flaviano”. Em sua carta o Santo Bispo condena os erros de Eutiques, mas concede a ele a possibilidade de ser readmitido caso se arrependesse.

Eutiques ainda estava ocupado buscando recursos. Um deles foi a Pedro Crisólogo, arcebispo de Ravena, onde este, em resposta a Eutiques, da o seguinte conselho:

“Exortamos você, ilustre irmão, a ouvir obedientemente o que foi escrito pelo bendito papa da cidade de Roma, desde o Beato Pedro, que vive e preside na sua sede, concede a verdade da fé para aqueles que a procuram. Para nós, em nosso zelo para paz e fé, não podemos ouvir casos sobre fé sem o consentimento do bispo de Roma.”[3]

Mas graças ao seu afilhado, Crisáfio (que havia influência na corte), o monge conseguiu pedir a realização de um concílio ecumênico, que foi apoiado por Teodósio II. 


Convite ao concílio de Éfeso

Em maio de 449, o papa Leão Magno recebeu um convite para o concílio. Respondendo Teodósio, Leão confirmou que Eutiques estava em erro, mas que poderia ser perdoado por meio do arrependimento, afinal o próprio havia falado que seguiria a decisão que o papa aprovasse. E continuou afirmando que, quanto a doutrina da Igreja Católica, ela estava exposta de maneira mais completa no seu tomo a Flaviano.

O papa também escreveu à Imperatriz Pulquéria e aos arquimandritas de Constantinopla, condenando os erros de Nestório e Eutiques. Incapaz de sair da Sé Apostólica devido a condições políticas, afirmou que seus legados iriam tomar seu lugar no concílio.

 

Um concílio se converte em um banditismo, o banditismo de Éfeso

O concílio foi inaugurado em Éfeso em 449, com Dióscoro de Alexandria presidindo por instruções imperiais. Estavam presentes cerca de 130 bispos, e junto com eles o bispo Júlio de Pozzuoli, líder dos legados romanos e dos bispos de Jerusalém.

O concílio começou com a leitura dos documentos, começando com as cartas do imperador. Depois da primeira carta lida, os legados romanos pediram para que fosse lido o tomo a Flaviano e, apesar de Dióscoro ter aceitado o pedido, o tabelião continuou a ler as cartas imperiais em vez dela. Quando os atos da condenação de Eutiques foram lidos, haviam exclamações como “Tome Eusébio e queime-o! Deixe-o queimar vivo! Que ele seja dividido em dois! Como ele dividiu, deixe-o ser dividido.”.[4] E então, bispo após bispo, declarou que Eutiques estava reabilitado.

Dióscoro tinha outra surpresa reservada. Alegando que os pais de Éfeso haviam proibido, sob pena de deposição, a introdução de qualquer fé além da de Niceia, ele propôs que os principais acusadores de Eutiques, Flaviano de Constantinopla e Eusébio de Dolireia, seriam depostos por terem violado este decreto com sua fórmula de duas naturezas em Cristo.

Vendo o caminho que tomara o concílio, Flaviano apela para Dióscoro. Mas é carregado para a prisão enquanto tentava se refugiar no altar. Um legado romano, diácono Hilário, manifesta o seu protesto: “contradicitur!”.


Apelos ao trono apostólico

Flaviano informou ao papa que Dióscoro não deixou o tomo de Leão ser lido, "embora seja suficiente para a confirmação da fé dos pais”.[5] Flaviano acrescentou que "quando eu apelei para o trono apostólico do príncipe dos apóstolos, e para todo o sínodo abençoado que está sob o sua Santidade[5], uma multidão de soldados o cercou e o impediu de se refugiar no altar. Depois de descrever a violência e outras cenas desagradáveis ​​no concílio, Flaviano pediu ao Papa Leão: 

... emitir um decreto que Deus informará sua mente para estruturar, de modo que, com um concílio de leste a oeste sendo realizado, uma fé semelhante pode ser pregada em todos os lugares para que o estatutos dos pais possam prevalecer, de modo que tudo o que foi feito pode ser considerado nulo e sem efeito.[5]

Eusébio de Dolireia faz um apelo ao papa, pedindo que seu episcopado fosse restaurado, junto com a sua comunhão com Roma:

Imploro a Vossa Beatitude ... restaura-me a dignidade do meu episcopado e a comunhão convosco, por meio de cartas vossas à minha humildade, concedendo-me a minha posição e comunhão [6]

Teodoreto, bispo de Ciro, também escreveu um apelo a São Leão Magno. Fala que humildemente corre para a Sé Apostólica, para receber dela a cura para as feridas da Igreja, pois dela vem a preeminência, e dela são irradiados os raios da única fé verdadeira:

Se Paulo, o arauto da Verdade, a trombeta do Espírito Santo, recorreu ao grande Pedro, a fim de obter dele uma decisão para aqueles em Antioquia que estavam disputando sobre viver de acordo com a Lei, muito mais nós, pequenos e gente humilde corre para a Sé Apostólica para obter cura de você para as feridas das igrejas. Pois é apropriado que você tenha em todas as coisas a preeminência, visto que sua Sé possui muitos privilégios peculiares.

...E sua Sé ainda é abençoada pela luz da presença de Deus, visto que nela Ele colocou sua Santidade para irradiar os raios da única Fé verdadeira.

...Pois o mais justo prelado de Alexandria não ficou satisfeito com a deposição ilegal e mais injusta do mais santo e amante de Deus bispo de Constantinopla, Flaviano, nem sua ira foi aplacada pela morte dos outros bispos da mesma forma. Mas eu também ele matou com sua pena na minha ausência, sem me chamar a julgamento, sem me julgar pessoalmente, sem me questionar sobre o que eu tenho sobre a Encarnação de nosso Deus e Salvador.[7]

 

A Sé do beato apóstolo Pedro responde

Com a chegada do legado romano, Hilário, a Roma, São Leão Magno recebe informações do terror que havia sido implantado no concílio. Envia uma carta de protesto ao imperador, onde escreve dizendo que os legados romanos protestaram contra o concílio pois sabiam que o que havia acontecido lá nunca seria recebido pela Sé Apostólica:

A partir da carta de sua clemência, que em seu amor à Fé Católica você enviou há algum tempo para a sé do beato Apóstolo Pedro, recebemos tanta confiança em sua defesa da verdade e da paz que pensamos que nada de prejudicial poderia acontecer de forma tão clara e bem, ordenou o assunto; especialmente quando aqueles que foram enviados ao conselho episcopal, que você ordenou que fosse realizado em Éfeso, foram tão plenamente instruídos que, se o bispo de Alexandria tivesse permitido as cartas, que eles trouxeram para o santo sínodo ou para o bispo Flaviano , para ser lido nos ouvidos dos bispos, pela declaração da mais pura Fé, que sendo divinamente inspirada que ambos recebemos e sustentamos, todo barulho de disputas teria sido tão completamente abafado que nem a ignorância mais poderia se divertir, nem o ciúme encontrar ocasião para fazer o mal.

... Que nossos delegados da Sé Apostólica viam ser tão blasfemo e contrário à Fé Católica que nenhuma pressão poderia forçá-los a concordar; pois no mesmo sínodo eles firmemente protestaram, como deveriam, que a Sé Apostólica nunca receberia o que estava sendo passado: já que todo o mistério da Fé Cristã está absolutamente destruído (que o Céu perdoou no reinado de sua Graça), a menos que esta maldade abominável, que excede todas as anteriores blasfêmias, sejam abolidas...

E porque este mistério agora está sendo impiedosamente a oposição de algumas ignorantes pessoas, todas as igrejas de nossas peças, e todos os sacerdotes suplicar sua clemência, com gemidos e lágrimas vendo que nossos delegados fielmente protestou, e bispo Flaviano deu-lhes um apelo por escrito , para ordenar que um sínodo geral seja realizado na Itália , que deve rejeitar ou apaziguar todas as disputas de tal forma que não haja mais nada duvidoso na Fé ou dividido no amor , e para ela, é claro, os bispos das províncias orientais devem vir, e se alguma delas foi vencida por ameaças e injúrias, e se desviou do caminho da verdade, eles podem ser totalmente restaurados por medidas de saúde. [8]

E as palavras do santo padre não se detiveram apenas ao imperador, São Leão Magno também escreve a imperatriz Pulquéria recriminando o que aconteceu em Éfeso:

E eles, de fato, que foram enviados, e um dos quais, escapando da violência do bispo de Alexandria que reivindica tudo para si, nos relataram fielmente o que aconteceu no Sínodo, opuseram-se, como era para eles, o que chamarei de frenesi no julgamento de um só homem, protestando que aquelas coisas que estavam sendo realizadas pela violência e pelo medo não podiam reverter os mistérios da Igreja e do próprio Credo composto pelos Apóstolos, e que nenhum dano poderia separá-los daquela Fé que eles tinha trazido totalmente estabelecido e exposto da Sé do bendito Apóstolo Pedro para o Santo sínodo.[9]

O papa também escreve a Flaviano dizendo que seus poderes episcopais seriam mantidos, no entanto Flaviano já havia sido morto devido aos maus tratos na prisão.

 

Os imperadores do Oeste pedem que Teodósio ouça aquele que detém o principado da Igreja

No início de 450, Valentiniano, imperador do oeste, fez uma visita a Roma, junto com sua esposa Eudóxia e sua mãe, Gala Placídia. A família imperial chegou na data festa da Cátedra de Pedro. O Papa Leão implorou aos soberanos para convencer seu parente, Teodósio, a remeter o caso de Flaviano a Roma, com um concílio a ser realizado na Itália. Valentiniano instou Teodósio por carta, cobrando dele a obediência ao beato bispo de Roma, aquele que detém o principado do sacerdócio, e que tem a faculdade de julgar no que diz respeito a fé e os bispos:

... para preservar intacta a dignidade da veneração [devida] em nosso tempo também ao bendito apóstolo Pedro, para que o mais beato bispo de Roma, a quem a antiguidade conferiu o principado do sacerdócio acima de tudo, têm a faculdade de julgar no que diz respeito a fé e os bispos...[10]

Gala Placídia também escreve a Teodósio, falando da reverência que a casa real deve ter para com a Igreja de Roma, por causa da sua preeminência:

Por isso pedimos a sua clemência para opor tais perturbações com a Verdade, e para ordenar que a Fé da religião católica seja preservada sem mácula, a fim de que de acordo com a norma e decisão da Sé Apostólica, que igualmente reverenciamos como pré Eminente, Flaviano pode permanecer totalmente ileso em seu ofício sacerdotal, e o assunto ser encaminhado ao Sínodo da Sé Apostólica, em que certamente ele adornou o primado, que foi considerado digno de receber as chaves do céu: pois isso nos torna todas as coisas para manter o respeito devido a esta grande cidade, que é a dona de toda a terra; e isso também devemos providenciar com muito cuidado para que o que antigamente nossa casa guardava não pareça em nossos dias ter sido infringido, e que pelo presente exemplo não ocorram cismas nem entre os bispos nem entre as igrejas santíssimas.[11]

O papa escreve também aos arquimandritas: Martilho e Fausto, de Constantinopla. Falando do seu empenho em defender a Igreja Universal, pois ele tem ciência de que preside a Igreja em nome do apóstolo Pedro:

Estou ciente de que presido a Igreja em nome daquele cuja confissão foi glorificada pelo Senhor Jesus Cristo, e cuja fé de fato destrói todas as heresias e especialmente luta contra a impiedade do erro presente, e eu entendo que não tenho escolha a não ser gastar todos os esforços nesse caso, no qual a salvação da Igreja Universal está sob ataque.[12]


O papa se dirige a Igreja

Voltando-se para o oeste, o papa dirigiu Ravennius, a bispo de Arles, publicar o Tomo a Flaviano a todos os bispos da Gália. Três bispos - Ceretius, Salonius e Veranus - dirigindo-se a Leão como "santo mestre, abençoado papa, Papa digno da Sé Apostólica”- pediu-lhe para verificar a precisão de sua cópia. Eles informaram a Leão que seu Tomo estava sendo aclamado em todas as igrejas:

Além disso, nós; que especialmente vos pertencem, estão repletos de um grande e indizível deleite, porque esta declaração especial do vosso ensinamento é tão apreciada onde as Igrejas se reúnem, que se expressa a opinião unânime de que o primado da Sé Apostólica é ali atribuído com justiça, de onde os oráculos do Espírito Apostólico ainda recebem suas interpretações. [13]

São Leão Magno também escreveu a Teodósio, dizendo que estava disposto a aceitar Anatólio, o bispo que substituiu Flaviano após o seu martírio, como bispo de Constantinopla, caso confessasse as verdades da fé católica, que estava contida nas atas do primeiro concílio de Éfeso, a carta de São Cirilo, e o todo a Flaviano, feito pelo próprio santíssimo papa:

E quando ele tiver percebido que é exigido e desejado dele o que servirá ao mesmo fim, que ele dê seu consentimento sincero ao julgamento dos católicos, para que na presença de todo o clero e de todo o povo ele possa sem qualquer reserva declara seu sincero reconhecimento da Fé comum, a ser comunicada à Sé Apostólica e a todos os sacerdotes e igrejas do Senhor, e assim, estando o mundo em paz por meio de uma única Fé, podemos todos ser capazes de dizer o que os anjos cantaram o nascimento da Virgem Maria pelo Salvador, “Glória nas alturas a Deus e paz na terra aos homens de boa vontade.” [14]


Teodósio II morre

No final de julho de 450, Teodósio II morreu em um acidente com seu cavalo. A autoridade imperial foi rapidamente assumida por sua irmã, Pulquéria. Quando Pulquéria se casou com um senador chamado Marciano, ele foi proclamado imperador pelo senado e pelo exército. Marciano anunciou sua ascensão ao trono em uma carta ao Papa Leão. Em sua carta ele demonstra preocupação com a religião católica: “Pela assistência da qual confiamos que a força de nossa autoridade é governada”, e acrescentou:

“Em primeiro lugar, pensamos que era justo dirigir-nos a Vossa Santidade, que exerce supervisão e governo sobre a fé divina, por meio de letras sagradas: convidando e rogando Vossa Santidade a rezar à Divindade Eterna pela firmeza e estado de nosso império. [15]

E o novo imperador do leste se compromete a realizar um sínodo presidido, com a devida autoridade, pelo bispo de Roma, para restabelecer a paz na Igreja:

... para que, com cada erro ímpio removido através do sínodo a ser celebrado por sua autoridade, a paz máxima possa obter entre todos os bispos da fé católica. [15]

Enquanto o concílio era preparado, o papa escrevia e enviava seus legados com a intenção de resolver as questões da Igreja, concedendo, aos bispos que anuíram com o banditismo, o poder de voltar a comunhão caso arrependessem-se e professassem um credo de fé satisfatório. O seu tomo era amplamente divulgado em todas as Igrejas, se tornando a regra comum de fé da mesma.

Com o concílio na iminência de ocorrer, São Leão Magno escreve uma carta dizendo que não poderia estar em pessoa, devidos aos impeditivos do tempo, mas que enviaria legados que representariam a Sé Apostólica, escreveu em carta:

...devemos dar muito valor ao concílio piedosamente intencionado de nosso mais misericordioso príncipe, no qual ele desejou sua sagrada irmandade para se reunir com o propósito de destruir as armadilhas do diabo e restaurar a paz da Igreja, respeitando até agora os direitos e a dignidade do beato Apóstolo Pedro, a ponto de nos convidar também por carta a garantir a nossa presença no seu venerável Sínodo. Na verdade, isso não é permitido pelas necessidades da época ou por qualquer precedente. No entanto, nestes irmãos, que são Paschasinus e Lucentius, bispos, Bonifácio e Basílio, presbíteros, que foram delegados pela Sé Apostólica , que a vossa fraternidade considere que eu estou presidindo o Sínodo [16]

 

 O CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA

Originalmente, o concílio havia sido programado para abrir em Niceia, mas o local foi alterado para Calcedônia, onde o mesmo foi inaugurado na basílica de Santa Eufêmia. Os comissários imperiais sentaram-se no meio; à sua esquerda estavam os legados papais, os bispos de Constantinopla, Antioquia, Cesareia da Capadócia, Éfeso e outros bispos. À direita estavam vários outros bispos, incluindo Dióscoro, bispo de Alexandria.


Dióscoro não pode se sentar nessa assembleia

Como Dióscoro estava sentado na assembleia, o legado romano pede para que ele seja retirado, por instrução do bispo de Roma, que é chefe de todas as Igrejas:

Paschasinus, o reverendíssimo bispo e legado da Sé Apostólica, levantou-se no meio com os seus reverendos colegas e disse: Recebemos instruções das mãos do bispo bendito e apostólico da cidade romana, que é o chefe de todas as igrejas, cujas direções dizem que Dióscoro não deve ter um assento nesta assembleia, mas que se ele tentar tomar seu assento, será expulso. Devemos cumprir essa instrução; se agora a tua santidade assim manda, que seja expulso ou então vamos embora.[17]

Os comissários imperiais pedem uma explicação sobre tal atitude, em resposta, Lucentius fala que ele deu sentença sobre quem não tem jurisdição, e que havia celebrado um sínodo sem a autoridade do bispo de Roma, o que não pode acontecer:

Lucentius, o bispo mais reverendo com o lugar da Sé Apostólica, disse: Deixe-o dar uma razão para seu julgamento. Pois ele se comprometeu a dar sentença contra alguém sobre quem não tinha jurisdição. E ele se atreveu a celebrar um sínodo sem a autoridade da Sé Apostólica, algo que nunca tinha acontecido nem pode acontecer.[17]

E Paschasinus acrescenta que não podem ir contra os decretos do bispo que governa a Sé Apostólica:

“Paschasinus o reverendo bispo, ocupando o lugar da Sé Apostólica, disse: Não podemos ir contra os decretos do bispo bendito e apostólico [ Papa para bispo em latim], que governa a Sé Apostólica, nem contra os cânones eclesiásticos nem as tradições patrísticas.”[17]

E Lucentius acrescenta que aquele que veio para ser julgado não pode ser sentar como quem veio para julgar:

Lucentius, o venerável bispo e ocupando o lugar da Sé Apostólica, disse: Não soframos tão grande insulto que nos seja feito a nós e a vós, como aquele que veio a ser julgado deve sentar-se [como quem deve julgar].[17]

 

A fé de Flaviano

O concílio moveu-se a tratar da Fé de Flaviano, como Dióscoro tentou julgá-lo, os comissários imperais tiveram que julgá-lo também, e interrogou a assembleia sobre a fé do mártir. O legado romano diz que a fé de Flaviano é perfeita, pois concordava com as palavras do homem apostólico, o bispo de roma:

Paschasinus o mais reverendo bispo, representando a Sé Apostólica , disse; Flaviano de abençoada memória expôs a fé da maneira mais sagrada e perfeita. Sua fé e exposição concordam com a epístola do homem mais abençoado e apostólico, o bispo de Roma. [18]

Máximo de Antioquia também defendeu Flaviano:

Máximo, o mais reverendo bispo de Antioquia na Síria, disse: O Arcebispo Flaviano de abençoada memória estabeleceu a fé ortodoxamente e de acordo com o mais amado de Deus e santíssimo Arcebispo Leão. E isso todos recebemos com zelo. [19]


 A fé do concílio

Os comissários imperiais pediram para que fosse feita uma declaração de fé do concílio. Cecrópio respondeu dizendo que seguia a carta de São Leão, a qual eles assinaram:

Cecrópio, o reverendo bispo de Sebastópolis disse: Os assuntos relativos a Eutiques foram examinados, e o arcebispo santíssimo de Roma deu um formulário que seguimos e à sua carta todos nós [isto é, aqueles em sua vizinhança] assinamos. [20]

E os bispos entoaram que essas declarações já bastavam:

Os mais reverendos bispos gritaram: Estas são as opiniões de todos nós. As exposições já feitas são suficientes: não é lícito fazer qualquer outra. [21]

Florentio, bispo de Sardis, disse que não era adequado redigir uma exposição de fé tão repentinamente, e que deveriam receber o auxílio de documentos adequados, apesar de que, para aqueles que subscreveram a carta do São leão Magno, nada mais é necessário:

portanto, sua magnificência para que nos dê tempo, para que possamos chegar à verdade da questão com um documento adequado, embora assim no que nos diz respeito, quem subscreveu a carta do Santo dos Santos Leão, nada mais é necessário [22]

Então foram lidos os credo Niceno junto com duas cartas de São Cirilo. Após a leitura foi clamado pelos bispos que essa era a fé do arcebispo Leão, que assim, também, Cirilo acreditava:

E quando essas cartas [isto é, a carta de Cirilo para Nestório e sua carta para João de Antioquia] foram lidas, os mais reverendos bispos gritaram: Todos nós acreditamos: o Papa Leão acredita: anátema para aquele que divide e para aquele que confunde: esta é a fé do Arcebispo Leão: Leão assim acredita: Leão e Anatólio assim acreditam: todos nós assim acreditamos. Como Cirilo, assim acreditamos, todos nós: eterna seja a memória de Cirilo: como as epístolas de Cirilo ensinam, tal é a nossa mente, tal tem sido a nossa fé: tal é a nossa fé: esta é a mente do Arcebispo Leão, assim ele acredita, assim ele escreveu.[23]

 

Leitura do tomo de Leão, Pedro falou por meio de Leão

O tomo de São Leão a Flaviano foi, então, lido no concílio. Após a leitura os bispos declararam que Pedro havia falado por meio de Leão:

Depois da leitura da epístola anterior, os reverendos bispos clamaram: Esta é a fé dos padres, esta é a fé dos Apóstolos. Assim todos nós acreditamos, assim os ortodoxos acreditam. Anátema para aquele que não acredita assim. Pedro falou assim através de Leão. Assim ensinaram os apóstolos. Leão ensinou piedosa e verdadeiramente, por isso ensinou Cirilo. Eterna seja a memória de Cirilo. Leão e Cirilo ensinaram a mesma coisa, anátema para quem não acredita. Esta é a verdadeira fé. Aqueles de nós que são ortodoxos, portanto acredite. Esta é a fé dos pais. Por que essas coisas não foram lidas em Éfeso [isto é, no herético sínodo realizado lá]? Estas são as coisas que Dióscoro escondeu. [24]

Porém, houveram bispos que tiveram dúvidas quanto ao conteúdo da carta de Cirilo em comparação com a de São Leão, e então os comissários decidiram que eles poderiam se reunir na casa de Anatólio "para ensinar aqueles que estão duvidando.”[25]


A condenação de Dióscoro

Foram lidas as acusações contra Dióscoro, as acusação eram das mais diversas, envolviam tirania, violência, lares destruídos, e até homicídios. Dióscoro também foi acusado de persuadir bispos egípcios a subscrever uma excomunhão contra o bispo de Roma.

Com as acusações feitas, era necessário ser realizada uma acusação formal ao bispo, para isso tomou a voz os legados romanos, que declararam que presidiam no lugar do papa universal:

É conhecido por este amado concílio de Deus que as letras sagradas [isto é, sacra imperial] foram enviados para o abençoado e apostólico e o papa universal, Leão, para induzi-lo a se dignar a estar presente antes deste santo concílio. No entanto, porque nem antigo costume exige isso, nem a necessidade geral do o tempo parece permitir, ele ordenou que nossa humildade presidir por ele neste conselho sagrado. [26]

O legado romano afirma que, mesmo Dióscoro tendo realizado a loucura de tentar excomungar o bispo de Roma, ele poderia ter recebido alguma clemência, mas que, devido sua ausência após ser convocado, ele seria condenado:

No entanto, mesmo depois de ter ousado cometer tais atos, nós deliberamos, no sentido de que alguma clemência poderia ser concedida por suas ações anteriores abismais, assim como foi concedido aos outros mais reverendos bispos, e àqueles que não tinham autoridade para julgar semelhante à dele. Mas porque ele excedeu em muito sua iniquidade anterior por seus excessos - (pois ele até mesmo ousou pronunciar excomunhão contra o santíssimo e abençoado arcebispo da Grande Roma, Leão) - além de muitas acusações cheias de suas muitas iniquidades foram feitas contra ele no santo e grande concílio, e tendo sido convocado uma, duas e uma terceira vez pelos mais amados bispos de Deus, ele estava totalmente indisposto a obedecer [27]

E, então, o legado expede a pena eclesiástica contra Dióscoro, pela autoridade do bispo de Roma, junto com a do apóstolo Pedro, e por intermédio do concílio:

Portanto, o mais sagrado e abençoado arcebispo da grande e antiga Roma, Leão, por nosso intermédio e através do presente santo sínodo, juntamente com o três vezes bendito apóstolo Pedro digno de todo louvor, que é a rocha e a fundação da Igreja Católica, e a fundação da fé ortodoxa, tirou-lhe a dignidade do episcopado e de todo ministério sacerdotal. Portanto, deixe este grande e santo sínodo, em conformidade com os cânones, decreto relativo ao referido Dióscoro. [27]

Anatólios concordou com a sentença, afirmando estar de acordo com a proclamação do trono apostólico:

Pensando a mesma coisa em todos os aspectos como o trono apostólico, eu também voto da mesma forma em relação a condenação de Dióscoro, ex-bispo da grande cidade de Alexandria ... [28]


A declaração de fé do concílio

Durante a quinta sessão os comissários lembraram os bispos sobre o pedido de fazer uma exposição de fé. Liderados pelos legados romanos, alguns bispos disseram que o tomo de Leão era uma declaração de fé suficiente. Apesar disso um grupo liderado por Anatólio escreveu uma declaração de fé, cuja maioria estava inclinada a concordar, no entanto a declaração dava margem a má interpretação, então os legados protestaram:

Se eles [os bispos] não concordam com a carta do apostólico e bendito homem, o Papa Leão, mande que nos seja dado rescritos, para que possamos voltar, e que lá [no Ocidente] seja celebrado o sínodo. [29]

Muitos bispos, no entanto, continuaram a defender a definição. Os comissários imperiais, portanto, compararam a declaração de fé de Anatólio com a declaração de Dióscoro em sua condenação a Flaviano. Acuado, Anatólio respondeu que Dióscoro não havia sido condenado por sua fé, mas por tentar excomungar o bispo de Roma:

Dióscoro não foi condenado por causa da fé [sic!], Mas porque excomungou o senhor Arcebispo Leão, foi convocado três vezes e não veio; e, portanto, ele foi condenado. [30]

Os comissários, então, pediram para acrescentar a frase da definição das naturezas de Cristo que havia sido expressa no tomo de São Leão, o que foi aceito. A definição do concílio incorporou essa linguagem, elogiando o Tomo de Leão por concordar com a confissão de Pedro e como "um certo pilar comum contra aqueles que pensavam mal."[31]

No final da quinta sessão, os atos do concílio contêm um discurso de Marciano, que caracterizou Leão como "governando o trono apostólico", e os legados papais assinaram os Atos em nome de Leão, "o papa mais abençoado e apostólico da Igreja Universal. ”[32]


O acordo entre Antioquia e Jerusalém

Como a maior parte do trabalho dogmático do concílio já havia terminado, o concílio voltou-se a casos específicos. Um deles envolvia o bispo Máximo, de Antioquia, e Juvenal, de Jerusalém. Eles tentaram um acordo sobre a jurisdição de ambos, Máximo consentiu com o acordo, mas apenas se fosse "aprovado por nosso venerável pai, o arcebispo da Grande Roma". Os legados romanos consentiram com o acordo. [33]

Posteriormente o papa dirigiu uma carta a Máximo, colocando-se contra a mudança, e escrevendo que as jurisdições deveriam ser mantidas conforme o cânon de Niceia.


Máximo de Antioquia é mantido

Quando Dommus, o antigo bispo de Antioquia, havia sido exilado por Dióscoro de Antioquia, Anatólio nomeou Máximo para sua sucessão. Mas este processo era ilegal, pois não estava em conformidade com a prescrição do concílio de Niceia. Mas, apesar da forma irregular, a decisão foi mantida, visto que o Bispo de Roma consentiu com isso:

Decretamos que nada feito naquele chamado conselho [o Conselho do Ladrão] será válido, exceto no que diz respeito ao santíssimo Máximo, bispo da grande cidade de Antioquia, visto que o santíssimo Leão, arcebispo de Roma, ao recebê-lo na comunhão, julgou que ele deveria governar a igreja de Antioquia, prescrição que eu também segui e aprovei, e todo o presente santo concílio. [34]

 

O cânon 28, a Sé Apostólica não pode ser humilhada

Na décima sexta sessão, quando a maioria dos bispos já havia ido embora, os legados romanos pediram para que fosse lido as atas do dia anterior, pois disseram a eles que havia sido realizadas algumas ações opostas aos cânones da Igreja. Foi lido, então, o cânon 28, o qual determina que Constantinopla seria a segunda em hierarquia, atrás apenas da igreja de Roma, pela sua característica de ser a nova cidade do imperador, e baseando-se no cânon do concílio de Constantinopla(381).

O legado Lucentios, respondeu questionando a validade do cânon, dizendo que ele se baseia em um cânon não sinótico, e, sobre esse poder, declarou “por que o procuram agora?”:

é claro que tendo posto de lado as constituições dos 318 [bispos de Niceia], eles seguiram as dos 150 [em Constantinopla em 381], que não estão incluídas nos cânones sinódicos, e que dizem ter sido decretadas quase oitenta anos atrás. Se, portanto, [os bispos de Constantinopla] exerceram esse privilégio nestes tempos, por que o procuram agora? Se eles nunca o tiveram, por que o procuram?[35]

Os legados protestaram, disseram que o cânon não foi feito de maneira adequada. Os comissários imperiais, então, perguntaram aos bispos de Ponto e da Ásia se eles haviam assinado o cânon 28 livremente ou sob compulsão. Vários bispos fizeram declarações de que assinaram livremente. Eusébio de Dorileia, um dos heróis do concílio ladrão de Éfeso, ainda acrescentou que o papa aceitou essa decisão:

Eu subscrevi livremente, porque também li esta regra para o papa mais abençoado da cidade de Roma na presença do clero de Constantinopla, e ele aceitou [sic!].[36]

Os comissários seguiram, declarando a legalidade do cânon. O legado, Lucentius, não gostou, e declarou seu protesto, dizendo que a Sé Apostólica não poderia ser humilhada em sua presença, e pediu para que o cânon fosse revogado. E, caso não fosse, que subscrevesse o seu protesto:

A Sé Apostólica não deve ser humilhada em nossa presença, e por isso imploramos a Vossa Alteza que revogue tudo o que foi feito ontem em prejuízo dos cânones e regras em nossa ausência: se não, que nossa contradição seja registrada nestes atos, para que nós possamos saber o que devemos relatar ao homem apostólico, papa da Igreja Universal, para que ele mesmo possa pronunciar a sentença a respeito da lesão de sua sé ou da reviravolta dos cânones. [37]


Carta do concílio ao Papa São Leão Magno

O sínodo encaminha uma carta ao papa. Nela, declaram que Sâo Leão Magno foi o chefe na pessoa daqueles que o representavam:

De quem tu eras, chefe, como cabeça dos membros, mostrando a tua boa vontade na pessoa daqueles que te representavam; [38]

O concílio também condenou as atitudes de Dióscoro, dizendo que ele havia se lançado contra o encarregado da custódia da videira pelo Salvador (falando do bispo de Roma):

e além de tudo isso ele estendeu sua fúria até mesmo contra aquele que tinha sido encarregado da custódia da videira pelo Salvador, queremos dizer com certeza a sua santidade, e excomunhão intencional contra aquele que tinha no coração a unificação da Igreja. E ao invés de mostrar penitência por isso, em vez de implorar misericórdia com lágrimas, ele exultou como se por ações virtuosas, rejeitando a carta de sua santidade e resistindo a todos os dogmas da Verdade. [38]

E anunciam que acreditam que o papa aceitará as mudanças impostas pelo cânon 28:

E informamos ainda que decidimos sobre outras coisas também para a boa administração e estabilidade dos assuntos da igreja, estando persuadidos de que sua santidade os aceitará e ratificará [38]

E anunciam que, assim como concedem ao chefe o acordo sobre coisas honrosas, que o chefe dê aos filhos o que é apropriado:

Por conseguinte, rogamos-lhe que honre nossa decisão com seu consentimento, e como cedemos ao chefe nosso acordo sobre as coisas honrosas, que o chefe também cumpra para os filhos o que é apropriado.[38]


Anatólio envia uma carta ao Papa, falando sobre o cânon 28

Por “sessenta ou setenta anos”, continuou Anatólio, os bispos de Constantinopla se acostumaram a ordenar os metropolitas do Ponto, Trácia e Ásia. Apesar disso, os legados de Roma, "ignorando a intenção de Vossa Santidade", se opuseram ao cânon, "perturbando o concílio e enchendo-o de confusão, considerando que isso não é nada”. Como se ignorasse aquele protesto, Anatólio escreveu: “a sé de Constantinopla tem como pai o seu trono apostólico, unindo-se a você de maneira particular e especial”. [39]

 

Papa Leão responde sobre o cânon 28

Em uma carta ao Imperador Marciano, o Santo Padre se diz que a paz da igreja foi perturbada.

Mas agora que essas coisas, sobre as quais tão grande assembleia de padres se reuniu, foram levadas a uma conclusão boa e desejável, estou surpreso e entristecido que a paz da Igreja Universal, que foi divinamente restaurada, esteja novamente sendo perturbada por um espírito de egoísmo[40]

O Santo papa afirma que a prerrogativa de ser a cidade imperial não tem qualquer valor, e que não pode haver um edifício seguro que não seja a rocha sobre a qual o Senhor edificou a sua Igreja:

Que a cidade de Constantinopla tenha, como desejamos, sua alta posição e, sob a proteção da direita de Deus, desfrute por muito tempo do governo de sua clemência. No entanto, as coisas seculares estão em uma base diferente das coisas divinas: e não pode haver nenhum edifício seguro, exceto naquela rocha que o Senhor colocou como fundamento.[40]

O Santo Padre diz para Anatólio se contentar com o cargo que lhe foi dado pelo Bispo de Roma, que ele não poderá tornar uma Sé Apostólica:

Que seja suficiente para Anatólio que com a ajuda de sua piedade e por meu favor e aprovação ele tenha obtido o bispado de uma cidade tão grande. Que ele não despreze uma cidade que é real, embora ele não possa torná-la uma Sé Apostólica[40]

Também exorta para que não pensem que Anatólio tinha o poder de nomear o bispo de Antioquia, algo que, em interesse da paz, o bispo de Roma decidiu não cancelar:

e não pensem que ele tinha qualquer direito de ordenar um bispo para a Igreja de Antioquia, como ele presumia fazer sem qualquer precedente e contrário às disposições dos cânones: um ato que de um desejo a restabelecer a fé e no interesse da paz, decidimos não cancelar[40]

Voltando-se para Pulquéria o papa Leão Magno recrimina Anatólio por, ao invés de se alegrar pela graça que recebeu do bispo de Roma, resolveu inflar-se de desejos indevidos:

Pois meu irmão e companheiro bispo Anatólio, não considerando suficientemente a bondade de Vossa Graça e o favor de meu consentimento, pelo qual ele ganhou o sacerdócio da igreja de Constantinopla, em vez de se alegrar com o que ganhou, foi inflamado com desejos indevidos além da medida de sua posição[41]

E sobre o cânon 28, o santo fala que ele foi declarado nulo pela autoridade do apóstolo Pedro:

não reconhecemos, e pela autoridade do beato Apóstolo Pedro, anulamos absolutamente em termos abrangentes[41]

O Papa São Leão Magno também escreve para o Bispo Anatólio, onde fala da posição eclesiástica que o cânon suprimia:

como se esta oportunidade tivesse se oferecido expressamente a você para a Sé de Alexandria perder seu privilégio de segundo lugar, e que a igreja de Antioquia renuncie ao seu direito de ser o terceiro em dignidade, a fim de que, quando esses lugares tivessem sido submetidos à sua jurisdição, todos os bispos metropolitanos fossem privados de sua devida honra.[42]

O Santo Padre também fala que o cânon não tem o consentimento escrito, pois os cânones utilizados como base nunca foram levados ao conhecimento de Roma:

Pois o vosso propósito não é de forma alguma apoiado pelo consentimento escrito de certos bispos dado, como alega, há 60 anos, e nunca levado ao conhecimento da Sé Apostólica pelos vossos predecessores[42]

E um outro fato também gerou mal-estar para o santo padre, em Constantinopla, Anatólio substituiu seu arquidiácono, Aécio - de quem Leão tinha uma grande estima - por um certo André, que para Leão era suspeito de heresia. Queixando-se de que Anatólio não se importava muito com o mistério da salvação humana, "ou com a sua própria”. Em cartas aos imperadores, Leão pediu a restauração de Aécio e a remoção de André. [43]


Anatólio responde São Leão Magno

Em abril de 454, Leão ouviu Anatólio, que parecia ter se sentido um pouco excluído dos acontecimentos recentes. Prometendo obediência ao julgamento de Leão, Anatólio pediu uma renovação de sua antiga correspondência amigável com Leão. Anatólio também anunciou que Aécio havia sido restaurado e que André foi separado da igreja, junto com aqueles "que haviam sido contra Flaviano, nosso pai e bispo de sagrada memória". Quanto ao cânon 28, Anatólio informou a Leão que "toda a força e confirmação dos atos foram reservadas à autoridade de Vossa Bem-aventurança." Renunciando a responsabilidade pelo cânone, Anatólio disse a Leão que outros membros do clero em Constantinopla o desejavam. [44]


CONCLUSÃO

Como escapar desta verdade de fé? Como negar a primazia deste local santo? Como ignorar as apelações daquele Santo mártir e bispo de Constantinopla, Flaviano, que, em seus últimos suspiros, tentou abrigar-se no trono apostólico? E como ignorar os pedidos daquele novo imperador deste mesmo local, Marciano, que, em busca de restabelecer a paz da religião, prostrou-se em frente àquele que exerce a supervisão e governo da fé divina? E como não somar, ao deste, aquele clamor que também existia no império do oeste, sob Valentiniano, que alertou quanto à obediência que haveriam de depositar naquele cuja antiguidade conferiu o principado do sacerdócio acima de tudo? Como não perceber a primazia manifestada naquela vã tentativa de excomunhão arremessada contra a rocha pelo bispo de Alexandria, que, tombando para frente, arrebentou-se pelo meio, e recebeu aquilo que lançara pela autoridade daquele contra quem lançou? E se essas palavras singulares são dificilmente escutadas por uma mente que deseja se fazer de surda, como negar o coro santo do maior concílio realizado até então, que se fez ao mesmo tempo, defensor e instrumento, daquele a quem chamaram de “detentor da custódia da videira pelo Salvador”? E, se falamos deste concílio, como ocultar as atitudes daquele a quem chamaram de “chefe e cabeça”, o santíssimo bispo de Roma, papa da Igreja Universal, São Leão “o grande”, que, jamais sem perder a humildade, não deixou de empregar o seu suave julgo em nome daquele beato apóstolo que é Pedra da Igreja?

Naquela ocasião, não apenas São Flaviano foi condenado, mas com ele toda a ortodoxia. E ela teria abandonado a igreja oriental, se esta não encontrasse o apoio vigoroso da Sé Romana. Não foi uma busca ilegítima que levou os padres gregos a procurarem uma cura para o seu mal no lado ocidental, o banditismo de Éfeso havia lhes mostrado o que poderia ser um concílio ecumênico sem o papa, dando luz àquelas palavras sagradas do santo padre: “não pode haver nenhum edifício seguro, exceto naquela rocha que o Senhor colocou como fundamento”.

Se as atrocidades ocorridas nesse abominável concílio despertassem a dúvida quanto a sua legitimidade, foi da voz de um legado papal que esta dúvida foi suprimida, pois um sínodo não poderia ser celebrado sem a autoridade da Sé Apostólica. E se é chocante conceber como, em dois anos, se produziram dois concílios tão diferentes, torna-se menos estranho quando percebemos que, na proporção em que o primeiro tentava se afastar da autoridade de Roma, o segundo se abrigava sob ela. Quanto ao segundo, como se trata da dignidade da Sé Apostólica, não podemos ignorar o cânon 28 que, apesar de não haver nele nada que fosse contra a primazia da Igreja de Roma, foi subscrito contra a vontade dos legados romanos, e é, portanto, clandestino e sub-reptício, e destituído de qualquer valor jurídico pela condenação do próprio papa.

Portanto, e como foi nosso objetivo expor, para rejeitar o primado da Sé Romana, não é suficiente chamar um santo como São Leão Magno de usurpador, mas aceitar que, junto com ele, todo o concílio ecumênico e a Igreja Ortodoxa do século 5 estavam em erro. 


O RECADO MAIS IMPORTANTE

Um recado que não é meu, mas da própria Igreja de Cristo:

APELO AO REGRESSO 
...A recordação de tão insignes e gloriosos fastos da Igreja faz que o nosso pensamento se volte espontaneamente e cheio de afeto paterno para os orientais. O sacrossanto concílio ecumênico de Calcedônia é um dos seus maiores títulos de glória, destinado a permanecer, sem dúvida, através de todos os séculos. Nele, sob a presidência da Sé Apostólica, foi vigilantemente defendida de um ímpio e ousado ataque, e maravilhosamente exposta por uma aguerrida e numerosa corte de bispos orientais, a doutrina da unidade de Cristo, em cuja única pessoa se juntam distintamente, sem se confundirem, as duas naturezas, divina e humana. Mas, por infelicidade, muitos no Oriente, através dos séculos, separaram-se da unidade do corpo místico de Cristo, cuja fúlgida imagem é precisamente a união hipostática. Não é acaso justo, salutar, e conforme a vontade de Deus, que todos finalmente voltem ao único redil de Jesus Cristo? 
...Todos aqueles que pelas circunstâncias de épocas difíceis se separaram desta Sé Apostólica, para a qual presidir é servir, desta sé, erigida por Deus como rocha inconcussa da verdade, não queiram já tardar mais em prestar-lhe a devida submissão e reverência, e sigam os exemplos de Flaviano – esse novo João Crisóstomo em sofrer valorosamente pela justiça –; os exemplos dos Padres do concílio de Calcedônia – membros digníssimos do corpo místico de Cristo -, de Marciano – Príncipe forte, clemente e sábio –, de Pulquéria – lírio alvíssimo de régia e intemerata beleza. Dessa volta dos irmãos separados à unidade da Igreja prevemos que há de jorrar uma fonte copiosa de bens para o orbe cristão...
...Há outro motivo ainda a exigir imperiosamente que os esquadrões de nome cristão se arregimentem quanto antes sob uma só bandeira para combaterem assim coesos contra os rijos ataques do inimigo infernal. A quem não aterroriza o ódio e a ferocidade, com a qual os inimigos de Deus, em muitas regiões da terra, procuram destruir e ameaçam exterminar tudo o que é divino e cristão? Ante às avançadas adversas, confederadas, não podem permanecer por mais tempo separados e dispersos quantos, assinalados com o sagrado caráter do batismo, têm por dever de ofício a obrigação de pelejar as batalhas de Cristo... 
...Ninguém estorve ou despreze a salutar ação de Deus! Com paterna e premente insistência convidamos e chamamos ao regozijo e aos benefícios desse retorno também os nestorianos e monofisitas. Estejam persuadidos de que será para nós a mais refulgente jóia da coroa do nosso apostolado o poder, ao recebê-los de novo, cumulá-los de amor e de honra, a eles que nos são tanto mais caros, quanto mais intenso é o desejo da sua volta, em nós suscitado pelo já tão longo tempo da sua separação. [45]




Fontes:

Keys Over the Christian World - Evidence for Papal Authority [33 A.D.- 800 A.D.] from Ancient Latin, Greek, Chaldean, Syriac, Armenian, Coptic and Ethiopian documents - Scott Butler and John Collorafi 

La Russie et L'Eglise Universelle - Vladimir Soloviev

Carta Encíclica Sempiternus Rex Christus - Papa Pio XII


Abreviações:

ACO = Schwartz, Edwardus. Acta Conciliorum Oecumenicorum. Berlin 1928

Mansi, G.D. Sacrorum Conciliorum Nova et Amplissima Collectio. Florence, 1759

PG = Migne, Cursus Patrologiae Completus, Greek Fathers. Paris, 1844-66.

PL = Migne, Cursus Patrologiae Completus, Latin Fathers. Paris, 1844-66.

Citações:

[1] Registro Epistolarum de São Gregório Magno, Livro 1, Letra 25

[2] [Inter epp. S. Leonis, 21. PL 54: 716]

[3] [Inter epp. S. Leonis, 25. PL 54: 743]

[4] [Mansi 7: 737]

[5] [Neues Archiv 11: 363-4]

[6] [Neues Archiv 11: 364-7]

[7] [PG 83: 1313-16]

[8] [Ep. 44. PL 54: 827-32]

[9] [Ep. 45. PL 54: 833-6]

[10] [Inter epp. S. Leonis, 55. PL 54: 859]

[11] [Inter epp. S. Leonis, 56. PL 54: 859-62]

[12] [Ep. 61. PL 54: 874-6]

[13] [Epp. 67-68. PL 54: 886-7]

[14] [Epp. 69- 70. PL 54: 890-95]

[15] [Inter epp. S. Leonis, 73. PL 54: 899-900]

[16]  [Ep. 93. PL 54: 937]

[17] [ACO II, Vol. 3, Pt. 1, 40]

[18] [ACO II, Vol. 3, Pt. 1, 94]

[19] [ACO II, Vol. 3, Pt. 1, 94]

[20] [ACO II, Vol. 1, Pt. 2, 78]

[21] [ACO II, Vol. 1, Pt. 2, 78]

[22] [ACO II, Vol. 1, Pt. 2, 78-9]

[23] [ACO II, Vol. 1, Pt. 2, 81]

[24] [ACO II, Vol. 1, Pt. 2, 81]

[25] [ACO II, Vol. 1, pt. 2, 83]

[26] [ACO II, Vol. 3, pt. 2, 18]

[27] [ACO II, Vol. 1: 2: 28-29]

[28] [Mansi 6: 1047 sq.]

[29][Mansi 7: 102. ACO II: 1: 2: 123]

[30] [Mansi 7: 104. ACO II: 1: 2: 124]   

[31] [Mansi 7: 113-16]

[32] [Mansi 7: 132-6]

[33] [Mansi 7: 180-82, 770]

[34] [ACO II, Vol. 3: 3: 47]

[35] [ACO II, Vol. 3, pt. 3, 108-9]

[36] [ACO II, 3: 3: 111-112]

[37] [ACO II, 3: 3: 113-14]

[38] [Inter epp. S. Leonis, 98. PL 54: 952]

[39] [PL 54: 982-84]

[40] [Ep. 104. PL 54: 995]

[41] [Ep. 105. PL 54: 1000]

[42] [Ep. 106. PL 54: 1001 sq.]

[43] [PL 54: 1019 sq.]

[44] [PL 54: 1082-4]

[45] Carta Encíclica Sempiternus Rex Christus