Dando continuidade, nessa parte II trago uma perspectiva mais Gnosiologica, pois bem, é ponto pacífico entre os estudos sobre Tomás, que o objeto primeiríssimo da nossa inteligência é o ser. Seja o que for que concebamos, a primeira coisa que cai sob o domínio da nossa inteligência é o que é ou o que pode ser.  Dessa forma, o ser do qual falamos aqui, e que é, o objeto primeiro e próprio do nosso intelecto, é o ente  e a essentia, e não o esse. O que de imediato captamos do real é aquilo que existe, vale dizer, o (ens), e o que ele é (quid sit), isto é, a sua quididade. como Diz Aquino;  
                       
                       “Obiectum autem proprium intellectus est quidditas rei”.

De fato, de uma coisa ou objeto qualquer, a sua qüididade é o objeto (primum) e próprio do intelecto. Disto se conclui que o coração do real, a saber, o ato de ser (actus essendi), que os entes possuem e exercem, não é nem o objeto primeiro, nem o objeto próprio do nosso intelecto, ou seja, não é o que ele por primeiro alcança, pois é a “qüididade” para Tomás que “o intelecto percebe primeiro e por si”. 

Por outro lado, para poder atingirmos o núcleo do real, cumpre-nos ultrapassar e transcender os objetos próprios e imediatos da nossa inteligência,  para só então podermos chegar ao ato de ser (actus essendi), que é o ato dos atos. Dai que, inclusive, o nosso entendimento tende a abandonar o plano do existir (esse)  para recair no plano essencial, que é como que o seu “habitat natural”, digamos assim.

A essência  da coisa (res), a qual inteligimos por primeiro, não é senão o ente, vale lembrar, a substância,  enquanto esta é uma dada substância, enquanto ela se encontra numa espécie de um determinado gênero, e existe. No entanto, em tais condições, tal substância encontra-se suscetível de ser expressa num conceito, que exprime a quididade  ou essência da coisa, algo que designa, por seu lado, o seu gênero e a sua espécie. Conforme diz Tomás, “o gênero designa a essência da coisa”, e, por consequência lógica, também a espécie, tendo em vista que; “ nenhuma coisa está em gênero sem estar em espécie”. Por isso  a descoberta do ato de ser apresentar-se, para nós, como uma forma de a nossa inteligência transcender a si própria, pois o ato de ser não é suscetível de ser expresso num conceito,  haja vista que ele de nada se diferencia por gênero e espécie, visto que o ente enquanto tal está em todos os gêneros e em todas as espécies, não se distinguindo de coisa alguma exceto do não-ente.

Logo, não pode ser expresso num conceito, pois o conceito designa a diferença por gênero e espécie. A nossa natureza conhece as coisas através do conceito. Por isso a dificuldade de ela permanecer por muito tempo na esfera do ato de ser, que não é suscetível de conceito. Com efeito, para que compreendamos melhor o que foi dito, é bom que tenhamos presentes quais são as duas operações do intelecto, prescindindo ainda do raciocínio. São elas, respectivamente, a intelecção ou simples apreensão, pela qual captamos a essência ou quididade da coisa (res) enquanto indivisa, e o juízo, pelo qual compomos e dividimos as essências entre si, e assim formarmos as proposições, que serão objeto do raciocínio. Ambas as operações do pensamento se relacionam com o real, mas não se referem a ele da mesma maneira. Por sua vez,  a intelecção atinge a essência da coisa "essentiam rei" que será expressa no conceito, o juízo, embora também trate das essências e dos conceitos, é capaz de alcançar o ato de ser destes entes, cujas essências estão expressas nos conceitos. Dai que, posso ratificar que;  o que por primeiro cai sob o domínio do nosso intelecto  é a quididade da coisa e não o seu ato de ser, em virtude do qual é ela é um ente.

Destarte, o existir (esse) é um ato. Sendo assim, para captá-lo, deve haver, na ordem do conhecimento, um ato que lhe corresponda. De forma que, uma tal passividade da primeira intelecção, que simplesmente recebe o ser estático da essência  que a definição irá exprimir, coloca-se a dinâmica do juízo, no qual o intelecto realmente atua, dando a entender que no juízo, o pensamento verdadeiramente associa e desassocia as essências, formulando as suas próprias proposições. Por isso, é  no juízo, que o pensamento realmente afirma a existência atual das substâncias. De modo preciso, é nele que o pensamento tem a percepção do ato que as faz existentes é, as substâncias, a saber, o ato de ser.

Por conseguinte, não há razão para vermos nisto uma separação, ou seja, como se a primeira das operações do intelecto não alcançasse o ser, mas a segunda, sim. No entanto, ambas o alcançam, só que de modo diverso. Na intelecção, o intelecto capta o ente, e como todo ente é e é algo, nosso intelecto, ao apreendê-lo, apreende-lhe também o seu quid est, isto é, a sua quididade, que ele expressa no conceito. Assim sendo, na intelecção ou simples apreensão, o intelecto não alcança ainda o ser em ato (esse in actu), mas sim aquilo que existe, qual seja, aquilo que está possuindo e exercendo o ser (esse), vale dizer, o ente. Ora, disto não deriva nenhuma dualidade, isto é, não há que se justapor o ente , que exerce o ato de ser, e o próprio ato de ser (actus essendi), colocando o ente de um lado e o ato de ser actus essendi do outro. Com efeito, todo ente, exatamente enquanto ente, pressupõe um ato de ser,  e todo ato de ser  supõe um ente que o exerça.

É bem verdade que são distintos, porquanto não há nenhum um ente criado cuja própria essência seja ato de ser. Todavia, não são extrínsecos, uma vez que subsistem na unidade da substância. Por isso, um encerra o outro, já que o existir ou (esse) ou ato de ser nas coisas é sempre o existir (esse) ou o ato de ser de alguma coisa (res) que existe, quer dizer, de um ente. Já,  na intelecção, estão o ente e o ato de ser, inseparáveis. Mas, é  pela própria forma passiva da intelecção, o nosso intelecto só consegue perceber nela o ente e a sua quididade, vale lembrar, o “quid est” que exerce o ato de ser. Já no juízo, por virtude de sua própria  dinâmica, para além do ente e da sua essência, pode-se discriminar o ato de ser que o ente exerce, não o possuindo, no entanto , por essência.

De resto, como é o ato de ser, última instância, que atualiza a substância tornando-a um ente, ou seja,  um existente, é ele também, consequentemente, que atualiza a essência da mesma substância, essência esta que será, pela intelecção ou simples apreensão, expressa num conceito. Daí que a primazia do ato de ser está presente, tanto na ordem da simples apreensão, quanto na ordem do juízo. Entretanto, permanece-nos tal primado imperceptível na simples intelecção, enquanto que, nesse dinamismo do juízo, conseguimos discerni-lo ou percebê-lo. 

Disso que todos os juízos formulam as suas relações em termos de existência, porque a função específica de todo juízo é significar o existir (esse). Nos juízos de existência, por seu lado, a expressão do existir (esse) é mais evidente. De fato, quando se diz José é, fica claro que a composição da substância José com a existência. Neste tipo de juízo, atesta se explicitamente que a substância José existe, ou seja, é um ente que possui e exerce o (actus existendi). 

No entanto, o verbo "ser" pode desempenhar, em determinados juízos, o papel de cópula em proposições. Nestes casos, como diz Gilson, "seu valor de existência é, pois, menos direto e, em consequência, nos aparente". Assim é, pois, enquanto cópula, o tal verbo ser passa a significar não já diretamente a existência do sujeito, mas sim do predicado no sujeito, ele diz;  

“a cópula é se refere sempre ao predicado, e não ao sujeito como no caso dos juízos de existência”. 

Por exemplo, na proposição Renzo é, o verbo ser indica, de forma imediata, que a substância renzo possui e exerce o ato de ser. Entretanto, quando se diz que Renzo é branco, o verbo não quer mais indicar diretamente a existência de Renzo, mas  que o predicado ou atributo (branco) existe em Renzo. Ao ser empregado desta forma, o verbo ser deixa de ser tomado em sua significação principal, imediata e plena, que é da existência atual, para ser levado em conta como um significado secundário, que deriva do principal. 

Daí que, a função primária do verbo ser, no juízo, é exprimir o actus essendi da substância, a sua existência atual, como diz mais uma vez Gilson; 

“O que por primeiro se apresenta ao pensamento, quando se diz é, é o mesmo ato de existir, quer dizer, esta atualidade absoluta que é a existência atual”.

Todavia, secundariamente, o verbo ser pode significar qualquer outra atualidade, especialmente, como também observa o nosso. A da forma, seja substancial, seja acidental. Enfim,  quando se diz Aristóteles é homem, quer-se compreender ou expressar que a forma homem existe atualmente na substância substantia Aristóteles, constituindo-a e determinando-a como uma substância pertencente à (species) humana. Por outro lado, quando se diz Aristóteles é branco, podemos  com isso exprimir na proposição, o acidente branco existente atualmente em Aristóteles, como determinação da sua substância, ( ente).  O que o verbo ser, como cópula, quer designar nestas fórmulas é também uma composição,  acentua isso Gilson; 

“não já, desta vez, a de essência e existência, senão a de toda forma com o sujeito que determina”.

Porém, como tais composições, que determinam o sujeito existente, também designam uma atualidade, nesse caso a atualidade das formas que determinam este sujeito, usa-se, então, o verbo ser, visto que tal verbo, podendo significar qualquer atualidade, pode expressar também estas atualidades. É o que explica Gilson;

“E como esta composição se deve à atualidade da forma, emprega-se naturalmente para designá-la o verbo ser, que significa principalmente a atualidade”.

Por seu turno, conforme assinalei, o verbo ser significa, primeiramente, o ato de ser em virtude do qual a substância é. No entanto, por isso, ele está apto para significar também ou (cossignificar) digamos assim,  como diz Aquino, qualquer outra atualidade da substância que é. 

Assim,  tendo em vista que todas as demais atualidades da substância ou ente derivam do ato único de existir da substância. É  este ato único de existir da própria substância que principalmente o verbo ser quer significar. E ao significar, em primeiro lugar, a atualidade, pode o verbo ser significar acessoriamente, ou, como diz Santo Tomás, “co-significar”, a composição de toda forma com o sujeito cujo ato é. Por outras palavras, é porque a ele cabe, antes de qualquer coisa, expressar a composição entre a substância e o esse, que por sua vez poderá, significar também, acessória e secundariamente, todas as demais atualidades que compõem e determinam a substância. 

Substantia existente, posto que todas estas outras atualidades são oriundas daquela atualidade primeira e fundante de toda a substância, a saber, o esse. Mas, enquanto empregamos o verbo ser apenas como cópula numa dada proposição, isto é, enquanto o empregamos para designar qualquer outra atualidade que não seja a atualidade primeira do esse, não podemos concluir que o sujeito destes predicados exista realmente, ou seja, que a substância à qual estes predicados são inerentes na fórmula, exista fora do pensamento. É o que observa Etienne: 

“Para que a unidade assim formada se apresente, ademais, como um ser real, isto é, que tenha seu ser total fora do pensamento, é preciso que o ato último de existir a determine”.


Por outro lado, quando se empregam o verbo ser como indicativo do existir do próprio sujeito da proposição, como quando dizemos Carlos é, é que podemos inferir que dada substância tem uma existência extramental, ou seja, que ela é um ente real que está a exercer o (actus essendi). De forma que todas as demais atualidades (já da forma substancial, dadas também as formas acidentais) estão subordinadas a esta atualidade primordial, e dela dependem diretamente para que correspondam a algo real, isto é, para que possamos concluir, com certeza, que existem fora do pensamento na dita substância.

Sendo assim, o verbo ser só é aplicado para designar o que verdadeiramente corresponde a uma realidade extramental, quando é usado, antes de qualquer coisa, para significar o próprio existir (esse) da substância. Aliás, esta é a sua função específica. Desta feita, a fim de se poder deduzir a existência extramental de todas as demais atualidades da substância, tem-se, antes de tudo, que se formular um juízo de existência, qual seja, uma proposição na qual o verbo ser, antes de ser cópula e de designar que um predicado existe num sujeito, designe a existência atual do próprio sujeito. Daí que, deve-se estabelecer uma fórmula na qual o verbo ser signifique a existência atual (o esse ou actus essendi) da própria substância. 

E, reitero, ao expressar o ser em ato (esse in actu) é a função própria de tal verbo. Dessa maneira, quando ele é usado com esta finalidade, a saber, querendo significar o próprio esse que a substância possui e exerce, que o juízo equivale à afirmação da existência de um ente real e não simplesmente de um ente lógico/ de razão, que pode ou não existir na realidade.

Assim por diante,  só o juízo de existência cumpre, a função por excelência de todo juízo, qual seja, a de significar a existência, porque somente ele expressa, direta e imediatamente, a existência atual. Apenas por meio dele e, fundado nele, o pensamento toma consciência de que, enquanto tal, imanente, não é uma operação isolada, puramente abstrata, fechada em si, porém, e também uma ação "transeunte", que capta e alcança ao real extramental, chegando mesmo à sua intimidade. Apenas ao  pressupor um juízo de existência é que se pode desenvolver uma doutrina do verdadeiro e do falso,  pois é só supondo que uma dada coisa possui e exerce uma existência atual, que podemos silogizar, coerentemente, em "adaequatio intellectus nostri ad rem." Como dizem os Escolásticos.

Por fim, verificamos que é somente no ato do juízo máxime nos juízos de existência que o pensamento humano atinge o âmago do real, posto que o coração do real, em Tomás, é um ato, vale dizer, o ato de ser ou (actus essendi), que só pode ser alcançado mediante outro ato, caso do (o ato do juízo). É o que acentua Gilson: 

“Sendo o ato a raiz mesma do real, somente o ato de julgar pode chegar ao real em sua raiz”. 

Dessa forma, para além da essência e do conceito que a expressa, para além do próprio ente, que é a substância enquanto existente, encontrase um ato, uma atividade, uma ação, que é o epicentro do real, o seu fundamento. Pois bem, tal descoberta desta "energia existencial" inaugura uma nova forma de observar e pensar o real. 

Donde a exação da sentença lapidar de Gilson, que sublinha a verdadeira riqueza do pensamento tomásico: 

“Sua riqueza está constituída por todos os juízos de existência que resume e conota, e mais ainda por sua referência permanente à realidade infinitamente rica do ato puro de existir”.

Portanto, não trata-se de um desprezo ao quod est das coisas, nem de negar ou renunciar o plano do conceito, que expressa precisamente o quid est da coisa, mas, de descobrir o que está encoberto aos nossos olhos a princípio, a saber, o verdadeiro quo est que se esconde por trás de toda essência,  do qual atualiza toda substância tornando-a um ente, e que está contido em todo conceito, caso do ato de ser/ (actus essendi).

E justamente aí, que se acha a riqueza inesgotável da filosofia de Aquinate;  numa filosofia na qual o existir é inconcebível de outra maneira que na e por uma essência, porém, que toda essência assinala um ato de existir, as riquezas concretas são inesgotáveis. Daí, por fim, uma última necessidade, qual seja, a de colocarmo-nos sempre criticamente diante de nossa própria razão, intelecto, já que a sua tendência de maneira preponderante é querer definir, conceituar. Fora que e como a filosofia é obra da razão, ela tende-se quase sempre em esquivar-se daquilo que não consegue conceber. E como o ato de ser não é conceituável, ela se inclina o mais das vezes a abandoná-lo, a esquecê-lo; concluímos assim com as palavras de Aquinate; 

“a razão não gosta do inconcebível; e, por ser assim a existência, a filosofia faz todo possível para evitá-la”. 

Com isso, faz-se necessário permanecer sempre vigilante na sua investigação, a fim de não esquecermos do ser (esse), concebido como actus essendi ou actus existendi. 






**A substância não existe por si, já que não possui a causa de sua existência. Só Deus, o único que existe sem causa, não é uma substância  já que a substância é um composto de matéria e forma, ato e potência.  Deus existe por si, no sentido de que o que é lhe pertence em virtude de um ato único de existir, algo que se explica imediatamente por este ato, em outras palavras; "razão suficiente de tudo o que é". 


Referências; 

Suma Contra os Gentios. I, XXII, 4 (208). 

Suma Teológica. I, 5, I, ad 1.

De Veritate, 27, 1 ad 8

capítulo XI do Compêndio de Teologia Tomista.

Etienne Gilson em sua obra El Tomismo

H. D. Gardeil  INICIAÇÃO À FILOSOFIA DE S. TOMÁS DE AQUINO

Ser e Essência, Étienne Gilson; https://b-ok.lat/book/5662912/35cb7bS. Tomás de 

Aquino COMENTÁRIO À METAFÍSICA DE ARISTÓTELES; https://www.pdfdrive.com/metaf%C3%ADsica-e60281767.html

Deus, Cornélio Fabro

COMENTÁRIO AO DE INTERPRETATIONE DE ARISTÓTELES, Santo Tomás de Aquino.